Pode ser dito que Hellblade não se encaixa como indie por ter tido investimentos e ser uma produção a nível Triple-A. Sim, o jogo teve um orçamento grande em comparação com outros indies, ajuda de outras empresas e um time extremamente experiente e capacitado, porém nada disso tira o mérito do trabalho feito pela Ninja Theory como jogo independente. Hellblade se tornou uma referência na indústria de jogos, com um time de vinte pessoas, criaram uma obra prima na Unreal Engine 4.
Lançado em 2017, o jogo foi muito aclamado no Game Awards daquele ano, sendo indicado para Melhor Narrativa e Melhor Indie(nessa categoria Hellblade perdeu para Cuphead), e ganhou Melhor Design de Áudio, Melhor Jogo Impactante e Melhor Atuação(Meline Juergens como Senua). Hellblade não foi indicado para Jogo do Ano, categoria dada para The Legend of Zelda: Breath of the Wild.
Ninja Theory estava com grandes ambições quando iniciou o projeto, queriam desenvolver um jogo com a nivel de Triple-A, porém com um custo final acessível e sem investir dinheiro suficiente para ser uma produção Hollywoodiana. Um artigo escrito por Matthew Raynolds no Eurogamer fala sobre isso.
“Não tem nada que fique no meio termo desses dois. É o espaço que chamamos de Triple-A Independente, que seria criar um jogo com qualidade Triple-A porém que possam ser oferecidos num preço mais acessível…fazendo ter o tamanho e escopo que queremos e um valor apropriado.”
Para fazer isso, os desenvolvedores tiveram que improvisar, se adaptar e passar por cima de vários obstáculos. O primeiro problema era o sistema de captura de movimento, eles não tinham fundos para pagar um estúdio especializado, então improvisaram um espaço em seu escritório para criar um mini-estúdio usando o que tinham à disposição. Para fazer a captura do rosto de Senua fizeram uma sessão de mais de cem fotos do rosto de Melina em diferentes ângulos sob diferentes pontos de iluminação. Este processo permitiu que criassem shaders extremamente realistas para seu rosto e corpo, com isso conseguiram chegar no ponto de “falar” com Senua(interpretada por Meline) ao vivo, renderizando ela dentro do jogo instantaneamente com precisão e sincronia incríveis.
O próximo desafio foi criar um cenário que tivesse a mesma qualidade gráfica de Senua. Eles não tinham nem dinheiro nem tempo para criar cada modelo, shader e textura do zero, então utilizaram uma câmera manual para fotografar todas as texturas que iam precisar: um saco de batatas, um tecido destruído por um cachorro, couro surrado, pintura corporal danificada, cordas, pelos, penas, ossos, caveiras, etc. Com tantas fotografias e materiais, conseguiram produzir um gráfico praticamente real.
Uma aproximação interessante da equipe para aumentar a imersão do jogador foi a abolição de uma UI genérica, então ao invés de um barra de HP/Stamina/Ação cada informação é dada ao jogador com sons, partículas, movimentos, sangue na tela, feridas abertas nos inimigos, luzes e sons específicos quando algum golpe é bloqueado ou rebatido. Uma UI inexistente ajudou a aumentar a imersão dentro da mente de Senua.
Sobre câmera, controle e combate, Ninja Theory não tinha muito tempo para desenvolver algo muito complexo, eles já estavam com as mãos cheias e não podiam se dar ao luxo de criar algo inovador, então ficaram no básico. Seguiram a regra básica do desenvolvimento de jogos: Primeiro faça funcionar, depois faça ficar bonito. Implementaram um sistema de combate simples e funcional, podendo atacar, bloquear, rebater, contra-atacar, esquivar e usar uma habilidade especial. Esse sistema minimalista foi implementado de forma muito fluida, então quando qualquer uma dessas ações é performada, a movimentação acontece muito naturalmente. O mesmo se aplica para movimentação geral, andando, correndo, se agachando, etc. Tudo foi gravado com o sistema de Motion Capture, então são movimentações reais, nada super articulado ou acrobático, mas sim movimentos simples que condizem com uma guerreira celta. Dublês foram gravados no sistema de Motion Capture para criar esse efeito, e com isso gastaram menos tempo e recursos. Menos é mais.
Improviso acompanhou a Ninja Theory no processo inteiro. Para conseguirem fazer um estúdio de Motion Capture tiveram que comprar luzes, câmeras e aparatos para criar a iluminação de ambiente necessária. Também montaram uma gambiarra juntando um elmo de cricket, um cabo de guarda-chuva e uma câmera para montar um capacete de Captura Facial.
Em termos de ambientação, o Level Designer fez um milagre no jogo, eles não queriam que o cenário dependesse do sistema de combate e movimentação, preferiram criar cenários que o jogador pudesse se perder observando seus arredores sem precisar de lutas constantes, missões e colecionáveis. Queriam que tivesse apreciação do cenário e interação com a psicose de Senua. Tudo no cenário é sombrio, gigante, massivo e opressivo. Helheim é um local desolado que com certeza não dá boas vindas aconchegantes, corpos dos condenados estão espalhados por todos os lados, ruínas e estruturas destruídas completam o desconforto. Apesar de todo o incômodo que o ambiente passa, ainda é muito fácil de se perder observando os detalhes. A madeira quebrada em farpas, as plantas, runas, tecidos, pedras talhadas, dentre outros. A ambientação vai de praias arruinadas onde se pode sentir a maresia e o cheiro de sal, até catacumbas de puro sofrimento e escuridão.
Pelo ponto de vista da história, Senua tinha uma grave psicose que a fazia ouvir vozes, ver as coisas de forma diferente, perceber o mundo como alguém que realmente tem essa patologia. A equipe da Ninja Theory foi para uma clínica psiquiátrica procurando ajuda e informação sobre esse assunto, e todos lá ficaram empolgados com o projeto, estavam sendo representados por uma personagem determinada que continuava seguindo em frente mesmo contra todas as possibilidades. As vozes na cabeça de Senua falam não só com ela, como também com o jogador, e tem uma história própria sendo contada. Ninja Theory entrou em contato com Paul Fletcher, psiquiatra e professor na Universidade de Saúde e Neurociência de Cambridge para entender mais sobre essa questão e poder criar uma psicose mais realista em Senua.
“Eu sofro de psicose, e esse jogo é a demonstração mais precisa e palpável dessa doença na mídia(principalmente nas sombras). Muitas vezes durante o jogo eu tive arrepios por causa da similaridade entre a experiência real e no jogo. O design sonoro é impecável. Eu geralmente nem mencionaria um efeito psicológico de “terror” ou “suspense” de um jogo, mas não é bem isso. Isso é uma carta de compaixão honesta para todos que sofrem de psicose. É a Ninja Theory dizendo “Nós entendemos, amigo. Nós entendemos.”
Eu estou entrando numa universidade de medicina para me tornar um psiquiatra, e vou usar esse e outros jogos psicológicos parecidos para tocar em assuntos delicados ou tabus(como Condemned, Metro ou até Brothers In Arms) para mostrar aos clientes e familiares do paciente para que possam ver, e mais importante ainda, SENTIR a sensação. Novamente agradeço a Ninja Theory por se comprometerem numa premissa tão difícil e fazerem algo tão bom.
Por último, Ninja Theory, se vocês decidirem fazer outro jogo como esse por favor nos deixe saber. A comunidade de saúde mental adoraria fazer uma vaquinha ou usar nossos talentos(eu toco música por 11 anos e adoraria fazer a trilha sonora de graça). Pense em nós, Ninja Theory, nós agradecemos e amamos vocês!”
“Essa é a minha primeira revisão na Steam e provavelmente não será lida no mundo de comentários desse título, mas eu senti que apesar de anos de jogos(ok, décadas) eu nunca senti essa necessidade de fortemente recomendar uma compra até agora. Claro que tem coisas que gostaria que tivessem sido mais complexas, o combate estilo Dark Souls ou The Witcher estragou um pouco, mas o que é especial sobre esse jogo é a narrativa e a coragem criativa que a Ninja Theory trouxe.
Isso não é um simples jogo. É uma experiência de arte, usando design de jogos para contar a história de psicose mais marcante que eu já vi. Eles fizeram o dever de casa, não só na parte de retratar a doença como também com a maravilhosa mitologia nórdica, graciosamente extirpada das garras de chiclete da Marvel e contada em toda sua sanguinolência, brutalidade e escuridão.
Senua é facilmente a heroína mais humana que eu já vi num jogo. Mesmo existindo várias personagens femininas ‘fortes’, não existe heroísmo comparado ao daqueles que estão quebrados e aleijados. Ela também precisa lutar contra seus próprios demônios, e tudo isso tem muito mais significado pois diferente da Fem-Shepard(Comandante Shepard em Mass Effect, versão feminina) que come Reapers no café da manhã, você pode ver a performance do rosto de Senua gravada pelo sistema de Motion Capture de forma linda, que ela realmente está aterrorizada enquanto luta.
Esse jogo é curto e provavelmente tem um valor de replay péssimo, mas mesmo assim é obrigatório de ser jogado.”
“Vocês são os heróis da indústria de jogos a esse ponto”
“Esse jogo é a prova que microtransações precisam morrer. Obrigado Ninja Theory.”
“Se Meline não ganhar o prêmio de melhor performance no Game Awards eu vou ficar triste.”
“Eu desejo a vocês o melhor no futuro. Experiência incrível, preço ótimo. O áudio em especial está perfeito.”
“Eu sou bipolar Tipo 2 Ciclo Rápido. Eu vivo uma briga de depressão suicida, mudanças de humor repentinas, irritabilidade, raiva, alucinações audiovisuais porém felizmente sem delírios. Eu sou extremamente grato pelo apoio da família e amigos. Jogando Hellblade fez eu me identificar com o que ela estava passando. Era uma perfeição na performance que eu sinto que realmente capturou algumas das coisas que tenho que lidar cotidianamente, e ainda se manteve respeitoso com pessoas que têm doenças mentais. É o que é, tem aqueles que os sintomas são muito piores, que sua lucidez é perdida junto com pedaços fraturados de suas vidas.
Esse jogo e as talentosas pessoas por trás dele são mais importantes para essa indústria e forma de arte do que nunca.”
Hellblade chegou num ponto em que a Ninja Theory começou uma bolsa anual para financiar os estudos de um tutor por ano na Universidade de Cambridge para que ele(a) possa desenvolver habilidades e conhecimento na área de saúde mental. O objetivo é ter mais pessoas capacitadas nesse setor e dar oportunidade de seguir carreira, além de disseminar o conhecimento sobre psicose, esquizofrenia e outras patologias psicológicas. Durante os três anos de desenvolvimento e parceria com a Universidade, a equipe ficou muito próxima de pessoas com esses problemas e se sensibilizaram com a situação. Foi aí que tiveram a ideia de como retribuir todo o carinho que tiveram.
Aproximadamente metade do custo de produção foi pago pela própria Ninja Theory, com dinheiro economizado dos lucros de outros jogos anteriores(eles sempre tiveram um projeto maior em mente). A fundação Wellcome Trust doou 5% dos custos totais, aproximadamente 30% da receita foram empréstimos com outras empresas ou colaboradores(que foram totalmente ressarcidos depois) e 15% foi do governo da Inglaterra com isenção de impostos e créditos.
Por último mas não menos importante, Hellblade tem uma playlist no YouTube com 30 vídeos contando todo o processo de criação ao longo de três anos. Um diário contando em detalhes como o jogo foi criado, de seu conceito até o lançamento, cobrindo pontos como as dificuldades, os problemas, processo criativo e muito mais.